A História dos 47 Rōnin

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Agora no começo de 2014 estreia nos cinemas o filme 47 Ronins, estrelado por Keanu Reeves. O filme é baseado numa história real japonesa, mas vai misturar fatos históricos com elementos de fantasia e muitos efeitos especiais. E você sabe do que se trata a história dos 47 Ronins? Eu não sabia, e fui fazer uma ampla pesquisa para saber mais dos acontecimentos que inspiraram a superprodução hollywoodiana. Depois de ler essa incrível história de lealdade, fiquei com mais medo do que já estava do filme que está por vir, afinal, será que os grandes produtores americanos vão conseguir colocar toda a essência do mito japonês numa obra que visa puramente o lucro comercial?

            O ocorrido nos remete a 1701, um tempo de paz durante o xogunato Tokugawa.  O Japão era então governado pelo xogum (=líder militar) Tokugawa Tsunayoshi  (1646 – 1709). O xogum vivia e reinava em Edo, atual Tóquio, enquanto o Imperador, que tinha seus poderes políticos limitados e era mais um símbolo do que o centro de poder propriamente dito, vivia em Kyoto.
            Como uma forma de mostrar reverência para com o Imperador, Tsunayoshi enviava presentes para Kyoto, pois era período das celebrações do Ano Novo e, reciprocamente, o Imperador mandava os seus presentes de Kyoto para Edo. No desenrolar deste processo de troca de presentes, Tsunayoshi enviou dois dos seus novos daimyo (=senhores feudais) para entreter os mensageiros imperiais em Edo: Asano Takumi No Kami Naganori, senhor do castelo de Ako na província de Harima, e Munehare Date, senhor de Sendai.
            Contudo, havia um problema: Asano, até então, tivera pouco contato com as cerimônias da corte e era inexperiente para receber os nobres visitantes. Sendo assim, o xogum designou um alto oficial chamado Kira Kozukenosuke Yoshinaka para lhe auxiliar na tarefa. Kira, um homem arrogante e de temperamento difícil, queria que Asano o recompensasse financeiramente pelo incômodo, o que não aconteceu. Kira não gostou de não ter sido subornado para melhor tratá-lo, e passou a fazer de tudo para provocar o daimyo. Sabendo da sua superioridade hierárquica, Kira o insultava e humilhava em público, até que um dia, ao chamar-lhe de selvagem camponês em pleno palácio do xogum, Asano perdeu a paciência, desembainhou sua espada e avançou sobre seu professor, ferindo-o na face.
            O mais grave neste descontrole não foi a agressão em si, mas o ataque dentro dos limites da residência do xogum, onde qualquer tipo de violência era proibida: qualquer ato violento nas dependências do castelo de Edo era considerado uma ofensa ao xogum e, portanto, Asano foi condenado.
            Asano fez pouco esforço para se defender durante seu interrogatório, exceto para dizer que não guardava rancor do xogum e que só lamentou não ter matado Kira. O daimyo foi obrigado a cometer seppuku (=suicídio ritualístico japonês, onde o condenado corta o próprio estômago, numa tentativa de restaurar sua honra). Kira não sofrera qualquer punição, o que gerou certo desconforto na sociedade local.
             De acordo com as leis do período, quando um samurai cometia sepukku, suas posses eram confiscadas pelo xogum, sua família deserdada, e os seus samurais eram ordenados a separar-se, tornando-se assim Rōnin (=um samurai dispensado do serviço ou sem mestre).
            O clã se dispersou, mas foi formado um pequeno grupo de 47 guerreiros que prometeram vingar a morte do seu mestre, mesmo sabendo que cumprida a promessa o seu caminho era a morte. Entre estes, destacou-se um fiel guerreiro chamado Ōishi Yoshio, conselheiro de Asano.
            Kira, temendo represálias, fortificou a sua residência e enviou espiões para observar os ex-servos de Asano. Os 47 Rōnin sabiam que para obterem sucesso teriam de esperar que este atenuasse a sua vigilância. Dispersaram-se e souberam esperar pelo momento certo.
            O plano de Ōishi era de esperar que Kira retomasse a confiança ao longo do tempo, enquanto eles esperavam pelo momento certo. Ordenou que todos os 47 Rōnin dessem continuidade às suas vidas de modo a não despertar suspeitas, e que vivessem como se tivessem abandonado o código de conduta dos samurais. Alguns viraram carpinteiros, alguns pescadores e outros mendigos. O próprio Oishi mudou-se para Kyoto para desviar atenções, onde passou a frequentar bordéis e tabernas, como se nada tivesse mais importância em sua mente. Um dia, Ōishi, bêbado, acabou por dormir na rua, provocando risos de quem passava perto dele. Um samurai  da província de Satsuma, enfurecido pelo comportamento incorreto por parte de um samurai, pois Ōishi bebia até cair em vez de vingar o seu mestre, insultou-o e chutou-lhe a cara, um insulto atroz para um samurai.
            Ōishi ainda deixou a sua esposa, e enviou para longe seus dois filhos mais jovens.
            Os espiões contratados por Kira relataram a vida desregrada dos possíveis vingadores e disseram que os servos de Asano eram todos péssimos samurais, sem a coragem para vingar seu mestre. Kira chegou à conclusão de que estava a salvo dos servos de Asano e assim baixou a sua guarda.
            O resto dos guerreiros, no seu papel de trabalhadores e comerciantes, ganharam acesso à residência de Kira, familiarizando-se com o desenho da casa e conhecendo as características de seu interior. Um dos samurais, para obter as plantas da casa, casou-se com a filha do construtor. Tudo isto era secretamente narrado a Ōishi.
            Em 1702, quase dois anos após a morte de Asano, quando Ōishi estava convencido de que Kira tinha abaixado sua guarda, eles decidiram atacar.
            Ōishi abandonou Kyoto e juntou-se ao resto do grupo secretamente, onde renovaram a promessa de vingar o seu mestre. No alvorecer do dia 14 de Dezembro, durante uma forte nevasca, os 47 Rōnin atacaram a residência de Kira em Edo. Seguindo um plano niponicamente pormenorizado, dividiram-se em dois grupos, armados com katanas (=espadas) e kyūdō (=arcos). Um grupo, liderado por Ōishi, atacou o portão principal; o outro grupo, liderado pelo seu filho mais velho, invadiu a casa pelos fundos. Um tambor tocaria como sinal de ataque simultâneo e um apito confirmaria a morte de Kira. Assim que estivesse morto, Kira seria decapitado e a sua cabeça levada para junto ao túmulo do seu mestre. Depois, os 47 Rōnin se entregariam e esperariam a sentença de morte. Ōishi pedira que mulheres e crianças fossem poupados e enviou mensageiros para informar os vizinhos de que não eram ladrões, mas servos que estavam ali para vingar a morte de seu mestre, e que não viriam a prejudicar ninguém: todos deveria ficar seguros. Todos os vizinhos odiavam Kira e não fizeram nada para prejudicar os Rōnin.
            Depois de posicionados os arqueiros para evitar qualquer fuga do castelo que fosse buscar ajuda, Ōishi soou o tambor e o ataque começou. Os que tentaram fugir para pedir ajuda foram mortos pelos arqueiros. Após o primeiro ataque, os Rōnin já tinham assassinado 16 e ferido 22 guardas, mas não encontravam Kira.
            Inspecionaram a casa, mas só encontraram mulheres e crianças. Até que Oishi percebeu que a cama de Kira ainda estava quente, logo, ele não poderia estar longe. Uma nova procura mais exaustiva descortinou uma passagem para um pátio secreto, onde estavam mais dois guardas, que foram vencidos e mortos. Finalmente, encontraram um homem, que atacou um dos samurais com uma faca, mas foi facilmente desarmado. Recusou-se a se identificar, mas os samurais presentes achavam que era Kira e soaram o apito. Os 47 Rōnin juntaram-se e Ōishi confirmou que era, de fato, Kira, pois tinha a cicatriz na face resultante do ataque de Asano. Assim, Ōishi ajoelhou-se, respeitando o grau hierárquico de Kira, identificou-se como um dos guerreiros de Asano que ali estava para vingar a sua morte, como um verdadeiro samurai deve fazer, e deu-lhe a mesma oportunidade que foi dada a Lorde Asano: morrer honradamente cometendo seppuku, oferecendo-lhe a mesma faca que Asano usara para se matar. Como não respondeu, permanecendo calado e a tremer, Kira foi decapitado com a mesma adaga que Asano cometeu seppuku.
            Os Rōnin carregaram a cabeça de Kira até o túmulo do seu mestre no templo Sengaku-ji, causando grande alvoroço pelo caminho. A novidade espalhou-se rapidamente e as pessoas saudavam-lhes pelo caminho. Chegando ao templo, os 47 Rōnin lavaram a cabeça de Kira e colocaram-na em frente ao túmulo de Asano.
Preparados para morrer , Ōishi enviou um mensageiro, um jovem Rōnin chamado Terasaka Kichiemon, ao magistrado a Edo, informando o que tinha sido feito, para que todos soubessem que a vingança foi finalmente realizada, e dizendo que eles iriam ficar à espera no templo Sengaku-ji, a aguardar ordens do xogum. [Embora essa versão de Kichiemon como mensageiro seja a mais amplamente aceita, alguns alegam que ele fugiu antes ou depois da batalha]
            O Shogun Tsunayoshi , em vez de ficar profundamente irado com o acontecimento, ficou muito impressionado com a enorme lealdade demonstrada pelos 47 Rōnin. Mas o assassinato de Kira colocou o governo em uma situação difícil, afinal, os sobreviventes que agora aguardavam seu destino haviam vivido sob as normas de lealdade esperadas do verdadeiro samurai. Além disso, a decisão de ordenar o seppuku de Asano e confiscar seus domínios sem tomar medidas contra Kira não era popular. No entanto, apesar dos samurais sem mestre terem seguido o código do Bushidō, haviam desafiado o poder do xogunato, e o xogum decidiu por manter a ordem. Como esperavam, foram sentenciados com a pena de morte, mas foi-lhes concedida a oportunidade de cometer seppuku, em vez de serem executados como criminosos. O mais novo dos Rōnin que foi enviado a Ako com a noticia da morte de Kira foi poupado da sentença.
            No dia 4 de fevereiro de 1703, os 46 Rōnin foram divididos em quatro grupos e entregues a 4 diferentes daimyo, que foram ordenados de supervisionar e testemunhar as suas mortes. Ōishi e os outros 45 Rōnin cometeram seppuku simultaneamente, e foram sepultados no templo de Sengaku-ji, junto a seu mestre, como era a sua vontade.
            Muitos admiradores da coragem dos Rōnin peregrinaram até o túmulo. Uma dessas pessoas foi o senhor da província de Satsuma, que agredira Oishi quando este estava embriagado. Em frente ao jazigo, ele pediu perdão por ter pensado que Ōishi não era um verdadeiro samurai. Cometeu seppuku em seguida, tendo sido enterrado ao lado dos 47 Rōnin.
            E ninguém desta história viveu feliz para sempre.


            A lenda dos 47 Rōnin é celebrada numa peça teatral chamada Chūshingura, que sempre leva seus espectadores as lágrimas. Todo ano, milhares de japoneses visitam o local onde estão enterrados os corpos do 46 Rōnin no Templo Sengaku-ji para prestar homenagem à honra e lealdade dos 47 Rōnin e a sua dedicação ao código do Bushidō. O aniversário de suas mortes é comemorado com um grande festival.

Entrelinhas

            Apesar de serem considerados heróis pela maior parte dos japoneses, teve gente que criticou a decisão dos Rōnin. Uma dessa pessoas foi Yamamoto Tsunetomo, autor do Hagakure, livro que já discuti aqui no site. Tsunetomo era  contemporâneo da história dos 47 Rōnin, e defende uma opinião peculiar em sua obra, compartilhada por alguns poucos outros samurais. Segundo ele, os Rōnin não agiram segundo o código de honra Bushidō. Questiona: "que fariam os samurais se Kira falecesse por doença entre o tempo que preparavam a sua morte?", pois a época, Kira já estava com sessenta anos. Seriam vistos para sempre como covardes e trariam vergonha ao clã Asano. Para Yamamoto, o que os Rōnin deveriam ter feito era atacar Kira assim que o seu mestre estivesse morto, sem se preocupar se atingiram o objetivo de o assassinar, mas assim demonstrar extraordinária coragem e determinação no ataque a Kira, e deste modo conseguir o respeito eterno do seu mestre.
            Para ele, a lenda dos 47 Rōnin é uma história de vingança e nunca uma história sobre o Bushidō. Segundo o mesmo autor, no código do Samurai não é a vitoria que interessa, mas sim a dedicação que se demonstra.

Fonte:

http://tiagointokyo.blogspot.com.br/2007/05/histria-dos-47-ronin-uma-lenda.html

http://aikidobrasilia.tripod.com/ronin.htmBushidō

Livro História do Japão, de Kenneth Henshall, Editora Edições 70

2 comentários:

Paulo Rennes Marçal Ribeiro disse...

Li e gostei, tanto da lenda quanto do estilo claro, coeso e elegante de Padu Aragon, que mais uma vez estimula a vontade de assistir a um filme. Parabéns.

Padu disse...

Na verdade, a história é mais do que uma lenda, aconteceu de fato.

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