Agora no começo de 2014 estreia nos cinemas o filme 47 Ronins, estrelado por Keanu Reeves. O filme é baseado numa história real japonesa, mas vai misturar fatos históricos com elementos de fantasia e muitos efeitos especiais. E você sabe do que se trata a história dos 47 Ronins? Eu não sabia, e fui fazer uma ampla pesquisa para saber mais dos acontecimentos que inspiraram a superprodução hollywoodiana. Depois de ler essa incrível história de lealdade, fiquei com mais medo do que já estava do filme que está por vir, afinal, será que os grandes produtores americanos vão conseguir colocar toda a essência do mito japonês numa obra que visa puramente o lucro comercial?
O ocorrido nos remete a 1701, um
tempo de paz durante o xogunato Tokugawa.
O Japão era então governado pelo xogum (=líder militar) Tokugawa
Tsunayoshi (1646 – 1709). O xogum vivia
e reinava em Edo, atual Tóquio, enquanto o Imperador, que tinha seus poderes
políticos limitados e era mais um símbolo do que o centro de poder propriamente
dito, vivia em Kyoto.
Como uma forma de mostrar reverência
para com o Imperador, Tsunayoshi enviava presentes para Kyoto, pois era período
das celebrações do Ano Novo e, reciprocamente, o Imperador mandava os seus
presentes de Kyoto para Edo. No desenrolar deste processo de troca de presentes,
Tsunayoshi enviou dois dos seus novos daimyo
(=senhores feudais) para entreter os mensageiros imperiais em Edo: Asano Takumi
No Kami Naganori, senhor do castelo de Ako na província de Harima, e Munehare
Date, senhor de Sendai.
Contudo, havia um problema: Asano,
até então, tivera pouco contato com as cerimônias da corte e era inexperiente
para receber os nobres visitantes. Sendo assim, o xogum designou um alto
oficial chamado Kira Kozukenosuke Yoshinaka para lhe auxiliar na tarefa. Kira,
um homem arrogante e de temperamento difícil, queria que Asano o recompensasse
financeiramente pelo incômodo, o que não aconteceu. Kira não gostou de não ter
sido subornado para melhor tratá-lo, e passou a fazer de tudo para provocar o daimyo. Sabendo da sua superioridade
hierárquica, Kira o insultava e humilhava em público, até que um dia, ao chamar-lhe
de selvagem camponês em pleno palácio do xogum, Asano perdeu a paciência, desembainhou
sua espada e avançou sobre seu professor, ferindo-o na face.
O mais grave neste descontrole não
foi a agressão em si, mas o ataque dentro dos limites da residência do xogum,
onde qualquer tipo de violência era proibida: qualquer ato violento nas
dependências do castelo de Edo era considerado uma ofensa ao xogum e, portanto,
Asano foi condenado.
Asano fez pouco esforço para se
defender durante seu interrogatório, exceto para dizer que não guardava rancor
do xogum e que só lamentou não ter matado Kira. O daimyo foi obrigado a cometer seppuku
(=suicídio ritualístico japonês, onde o condenado corta o próprio estômago,
numa tentativa de restaurar sua honra). Kira não sofrera qualquer punição, o que
gerou certo desconforto na sociedade local.
De acordo com as leis do período, quando um
samurai cometia sepukku, suas posses
eram confiscadas pelo xogum, sua família deserdada, e os seus samurais eram
ordenados a separar-se, tornando-se assim Rōnin
(=um samurai dispensado do serviço ou sem mestre).
O clã se dispersou, mas foi formado
um pequeno grupo de 47 guerreiros que prometeram vingar a morte do seu mestre,
mesmo sabendo que cumprida a promessa o seu caminho era a morte. Entre estes,
destacou-se um fiel guerreiro chamado Ōishi Yoshio, conselheiro de Asano.
Kira, temendo represálias,
fortificou a sua residência e enviou espiões para observar os ex-servos de
Asano. Os 47 Rōnin sabiam que para obterem
sucesso teriam de esperar que este atenuasse a sua vigilância. Dispersaram-se e
souberam esperar pelo momento certo.
O plano de Ōishi era de esperar que
Kira retomasse a confiança ao longo do tempo, enquanto eles esperavam pelo
momento certo. Ordenou que todos os 47 Rōnin
dessem continuidade às suas vidas de modo a não despertar suspeitas, e que
vivessem como se tivessem abandonado o código de conduta dos samurais. Alguns
viraram carpinteiros, alguns pescadores e outros mendigos. O próprio Oishi
mudou-se para Kyoto para desviar atenções, onde passou a frequentar bordéis e
tabernas, como se nada tivesse mais importância em sua mente. Um dia, Ōishi, bêbado,
acabou por dormir na rua, provocando risos de quem passava perto dele. Um
samurai da província de Satsuma,
enfurecido pelo comportamento incorreto por parte de um samurai, pois Ōishi
bebia até cair em vez de vingar o seu mestre, insultou-o e chutou-lhe a cara,
um insulto atroz para um samurai.
Ōishi ainda deixou a sua esposa, e
enviou para longe seus dois filhos mais jovens.
Os espiões contratados por Kira
relataram a vida desregrada dos possíveis vingadores e disseram que os servos
de Asano eram todos péssimos samurais, sem a coragem para vingar seu mestre.
Kira chegou à conclusão de que estava a salvo dos servos de Asano e assim
baixou a sua guarda.
O resto dos guerreiros, no seu papel
de trabalhadores e comerciantes, ganharam acesso à residência de Kira,
familiarizando-se com o desenho da casa e conhecendo as características de seu
interior. Um dos samurais, para obter as plantas da casa, casou-se com a filha
do construtor. Tudo isto era secretamente narrado a Ōishi.
Em 1702, quase dois anos após a
morte de Asano, quando Ōishi estava convencido de que Kira tinha abaixado sua
guarda, eles decidiram atacar.
Ōishi abandonou Kyoto e juntou-se ao
resto do grupo secretamente, onde renovaram a promessa de vingar o seu mestre.
No alvorecer do dia 14 de Dezembro, durante uma forte nevasca, os 47 Rōnin atacaram a residência de Kira em
Edo. Seguindo um plano niponicamente pormenorizado, dividiram-se em dois
grupos, armados com katanas (=espadas) e kyūdō
(=arcos). Um grupo, liderado por Ōishi, atacou o portão principal; o outro
grupo, liderado pelo seu filho mais velho, invadiu a casa pelos fundos. Um
tambor tocaria como sinal de ataque simultâneo e um apito confirmaria a morte
de Kira. Assim que estivesse morto, Kira seria decapitado e a sua cabeça levada
para junto ao túmulo do seu mestre. Depois, os 47 Rōnin se entregariam e esperariam a sentença de morte. Ōishi pedira
que mulheres e crianças fossem poupados e enviou mensageiros para informar os
vizinhos de que não eram ladrões, mas servos que estavam ali para vingar a
morte de seu mestre, e que não viriam a prejudicar ninguém: todos deveria ficar
seguros. Todos os vizinhos odiavam Kira e não fizeram nada para prejudicar os Rōnin.
Depois de posicionados os arqueiros
para evitar qualquer fuga do castelo que fosse buscar ajuda, Ōishi soou o
tambor e o ataque começou. Os que tentaram fugir para pedir ajuda foram mortos
pelos arqueiros. Após o primeiro ataque, os Rōnin
já tinham assassinado 16 e ferido 22 guardas, mas não encontravam Kira.
Inspecionaram a casa, mas só
encontraram mulheres e crianças. Até que Oishi percebeu que a cama de Kira
ainda estava quente, logo, ele não poderia estar longe. Uma nova procura mais
exaustiva descortinou uma passagem para um pátio secreto, onde estavam mais
dois guardas, que foram vencidos e mortos. Finalmente, encontraram um homem, que
atacou um dos samurais com uma faca, mas foi facilmente desarmado. Recusou-se a
se identificar, mas os samurais presentes achavam que era Kira e soaram o
apito. Os 47 Rōnin juntaram-se e Ōishi
confirmou que era, de fato, Kira, pois tinha a cicatriz na face resultante do
ataque de Asano. Assim, Ōishi ajoelhou-se, respeitando o grau hierárquico de
Kira, identificou-se como um dos guerreiros de Asano que ali estava para vingar
a sua morte, como um verdadeiro samurai deve fazer, e deu-lhe a mesma
oportunidade que foi dada a Lorde Asano: morrer honradamente cometendo seppuku, oferecendo-lhe a mesma faca que
Asano usara para se matar. Como não respondeu, permanecendo calado e a tremer,
Kira foi decapitado com a mesma adaga que Asano cometeu seppuku.
Os Rōnin carregaram a cabeça de Kira até o túmulo do seu mestre no
templo Sengaku-ji, causando grande
alvoroço pelo caminho. A novidade espalhou-se rapidamente e as pessoas saudavam-lhes
pelo caminho. Chegando ao templo, os 47 Rōnin
lavaram a cabeça de Kira e colocaram-na em frente ao túmulo de Asano.
Preparados
para morrer , Ōishi enviou um mensageiro, um jovem Rōnin chamado Terasaka Kichiemon, ao magistrado a Edo, informando o
que tinha sido feito, para que todos soubessem que a vingança foi finalmente
realizada, e dizendo que eles iriam ficar à espera no templo Sengaku-ji, a aguardar ordens do xogum. [Embora essa versão de Kichiemon como mensageiro seja a mais
amplamente aceita, alguns alegam que ele fugiu antes ou depois da batalha]
O Shogun Tsunayoshi , em vez de
ficar profundamente irado com o acontecimento, ficou muito impressionado com a
enorme lealdade demonstrada pelos 47 Rōnin.
Mas o assassinato de Kira colocou o governo em uma situação difícil, afinal, os
sobreviventes que agora aguardavam seu destino haviam vivido sob as normas de
lealdade esperadas do verdadeiro samurai. Além disso, a decisão de ordenar o seppuku de Asano e confiscar seus
domínios sem tomar medidas contra Kira não era popular. No entanto, apesar dos
samurais sem mestre terem seguido o código do Bushidō, haviam desafiado o poder do xogunato, e o xogum decidiu por
manter a ordem. Como esperavam, foram sentenciados com a pena de morte, mas
foi-lhes concedida a oportunidade de cometer seppuku, em vez de serem executados como criminosos. O mais novo
dos Rōnin que foi enviado a Ako com a
noticia da morte de Kira foi poupado da sentença.
No dia 4 de fevereiro de 1703, os 46
Rōnin foram divididos em quatro
grupos e entregues a 4 diferentes daimyo,
que foram ordenados de supervisionar e testemunhar as suas mortes. Ōishi e os
outros 45 Rōnin cometeram seppuku simultaneamente, e foram
sepultados no templo de Sengaku-ji,
junto a seu mestre, como era a sua vontade.
Muitos admiradores da coragem dos Rōnin peregrinaram até o túmulo. Uma
dessas pessoas foi o senhor da província de Satsuma, que agredira Oishi quando
este estava embriagado. Em frente ao jazigo, ele pediu perdão por ter pensado
que Ōishi não era um verdadeiro samurai. Cometeu seppuku em seguida, tendo sido enterrado ao lado dos 47 Rōnin.
E ninguém desta história viveu feliz
para sempre.
A lenda dos 47 Rōnin é celebrada numa peça teatral chamada Chūshingura, que sempre leva seus espectadores as lágrimas. Todo
ano, milhares de japoneses visitam o local onde estão enterrados os corpos do
46 Rōnin no Templo Sengaku-ji para prestar homenagem à
honra e lealdade dos 47 Rōnin e a sua
dedicação ao código do Bushidō. O
aniversário de suas mortes é comemorado com um grande festival.
Entrelinhas
Apesar de serem considerados heróis
pela maior parte dos japoneses, teve gente que criticou a decisão dos Rōnin. Uma dessa pessoas foi Yamamoto
Tsunetomo, autor do Hagakure, livro
que já discuti aqui no site. Tsunetomo era contemporâneo da história dos 47 Rōnin, e defende uma opinião peculiar em
sua obra, compartilhada por alguns poucos outros samurais. Segundo ele, os Rōnin não agiram segundo o código de
honra Bushidō. Questiona: "que
fariam os samurais se Kira falecesse por doença entre o tempo que preparavam a
sua morte?", pois a época, Kira já estava com sessenta anos. Seriam vistos
para sempre como covardes e trariam vergonha ao clã Asano. Para Yamamoto, o que
os Rōnin deveriam ter feito era
atacar Kira assim que o seu mestre estivesse morto, sem se preocupar se atingiram
o objetivo de o assassinar, mas assim demonstrar extraordinária coragem e
determinação no ataque a Kira, e deste modo conseguir o respeito eterno do seu
mestre.
Para ele, a lenda dos 47 Rōnin é uma história de vingança e nunca
uma história sobre o Bushidō. Segundo
o mesmo autor, no código do Samurai não é a vitoria que interessa, mas sim a
dedicação que se demonstra.
Fonte:
http://tiagointokyo.blogspot.com.br/2007/05/histria-dos-47-ronin-uma-lenda.html
http://aikidobrasilia.tripod.com/ronin.htmBushidō
Livro História do
Japão, de Kenneth Henshall, Editora Edições 70
2 comentários:
Li e gostei, tanto da lenda quanto do estilo claro, coeso e elegante de Padu Aragon, que mais uma vez estimula a vontade de assistir a um filme. Parabéns.
Na verdade, a história é mais do que uma lenda, aconteceu de fato.
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